... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano III Número 38 - Fevereiro 2012

Editorial


Depois do carnaval vem as cinzas. Depois da bebedeira, a ressaca. Depois da festa, deveria vir o resguardo, mas para TUDA não há descanso! Teimosa & eufórica, resistente & persitente, com um erriño errinho aqui & outro acolá, e ainda assim cheia de imprecisões, que me perdoem artistas & escritores mas TUDA brinda os leitores! E a leitura... em todas as suas formas possíveis & (ainda) impossíveis! Um brinde à pedra, à cunha, à madeira, ao papel, à tinta, às prensas, ao livro, ao silício, aos supercondutores, ao elétron, à internet... TUDA já está no aiPédi & no aiFôn, nos Gálaquisis & n'outros tábiletis & ismartifônes afins também! Verdade! Pode conferir!

Neste Fevereiro, depois de se despedir do Ano do Coelho, TUDA celebra a entrada do Ano do Dragão, o mais esperado e temido dos 12 animais da astrologia chinesa! É também neste Fevereiro que TUDA fica (indiretamente) mais velha, na carcaça deste que vos escreve... mais velha porém com mais vitalidade, entusiasmo, orgulho e extravagância em seus ideais... e traz um novo pacotão de aniversário, de novo, muita coisa nova, muita coisa boa - confira os colaboradores na seção Dívida Interna.

É isso aí companheiros: na suja LabUTA do dia-a-dia, só por hoje, devagar & sempre que atrás vem gente, a ganância é a ordem, e vem bicho também, vem carro à toda, furando o semáforo/sinal/farol/sinaleira, com sirene falsa ou verdadeira, ou sem sirene mesmo, pra quê, vem gente boa e gente ruim, vem espertinho querendo tirar vantagem, espertão vendendo a vida eterna, crente, cristão, testemunha de jeová, vem flanelinha, camelô, o rapa, vem polícia atirando em bandido, bandido atirando em polícia, polícia e bandido atirando ao léu... Cadê o velho e inofensivo vendedor do Baú da Felicidade? Cadê a moça do Yakult? Não tem mais leite em garrafa de vidro e pão quentinho na porta de casa, o vendedor de quebra-queixo, o caminhão de frutas frescas e de época (o que é futa de época?), a kombi do oveiro... e as pamonhas fresquinhas de Piracicaba, o puro creme do milho, PAmonhas, PAMOnhas, PAMONHAS...

Maquintóchi onde TUDA é editada!
Image source: http://www.usbtypewriter.com

TUDA de bom!

Eduardo Miranda
O (auto-proclamado) Editor

Dívida Interna


Editor
Eduardo Miranda

Capa
José Geraldo de Barros Martins

Digitação
Eduardo Miranda

Revisão
Dos autores

Colaboram nesta edição:
Almandrade, Antonio Bartolo, Arnaldo Xavier, Ben Stack, Carey Clarke, Cesar Cruz, Damien Hirst, Dorival Fontana, Edson Bueno de Camargo, Eduardo Miranda, Grant Wood, José Geraldo de Barros Martins, José Miranda Filho, Kathleen Jackson, Marina Alexiou, Mário Quintana, Pablo Picasso, Pedro Du Bois, Randall Stoltzfus, Regina Alonso, Ricardo Portugal, Roberto Aguerre Ravizza, Ronald Augusto, Roniwalter Jatobá, Salvador Dalí, Santiago de Novais, Utagawa Hiroshige, Utagawa Kuniyoshi, Van Gogh, Vangobot, Vagner Barbosa e Wu Guanzhong.

E-mail
tuda.papel.eletronico@gmail.com

Poesia - Arnaldo Xavier

city scene urban landscapes: freedom Brazil Sao Paulo cityscape elevated view dusk art
Vangobot, Acrylic on canvas, 40.00 x 26.60 inches
São Paulo

"um dia no rio
tietê correu sangue
como correu no rio volga
como correu nos esgotos de varsóvia
como correu nos vales de áfrica
(e suas veias
borbulhavam gemidos)
lá pras bandas de são miguel paulista
correu sangue
e o sangue foi confundido
com leite
e as mamadeiras percorreram
os corpos deitados
sobre os trilhos
enquanto as locomotivas
não vinham (cheias
de vidas)
sangue confundido
com leite
no vice-versa de putas cabras
que amamentavam a radial
leste de a
feto".

Poesia - Santiago de Novais

Ilustração enviada pelo autor

Vingança

Amo o amor indisponível
O amor da obscuridade
O amor das entrelinhas
O amor dos semitons
O amor barítono
O amor semitonado
Amo o que tem pra ser amado
Agora deram pra não dar sacolas no supermercado
E eu pedi pra nascer assim e precisar delas?
Meu cú.
Cebolas.

Poesia - Dorival Fontana

Randall Stoltzfus - The Tree that Killed Jackson Pollock, Oil on panel, 48 inches x 60 inches.

Sentido

A felicidade é passageira,
a dor é passageira,
a vida é passageira,
a morte também deve ser passageira.
Livrai-me dessa eterna monotonia,
desse estado de ser permanente,
das rotinas justificadas com disciplina,
da obrigatoriedade do tempo preenchido,
das mil inutilidades úteis e de outras utilidades inúteis,
de substituir o vazio por outro vazio ainda maior.
Livrai-me da prisão que carrego e dessa espera que não tem mais fim.
Livrai-me da vida e da morte, que minha alma encontre morada
e meu corpo a natural extinção.
E que todas as vidas revividas sejam passageiras.

Poesia - Pedro Du Bois

White Rain, Ben Stack

Ao Longe

Sobre o monte             ao longe
distingo                        a única presença
            azulando o espaço

(perco a visão do aproximado)

os olhos detidos                  ao instante
sonham                               a seca noite
              que me invade.

(Pedro Du Bois, inédito)

Poesia - Vagner Barbosa

Winter Abstract In The Spirit of Jackson Pollock! - Kathleen Jackson
O Gosto da Madrugada

Eu gosto da madrugada
Quase amanhecendo
Quando uma única estrela fria
Despede-se da noite
E o vermelho nas franjas do céu
Anuncia que lá vem o dia

Gosto do silêncio destas horas
Da proximidade dos sonhos
De onde acabei de saltar
Ainda frescos na memória

Paro então e meço
O tempo escorrendo
Pingando pela calha do dia
Que se avizinha

E logo vem o sol em disparada
Apertando o botão da manhã
Que engrena e nos arrasta
Entre homens, coisas e signos

Poesia - Almandrade

Flowing Rhythm (red), A simple modern mobile in the style of Alexander Calder
Geometria Fora do Lugar

A esquina celebra
o ângulo.
Possível destino
de uma reta:
mudar de direção.
A rua possibilita
o retorno.
O andarilho inocente
repete o caminho
sem encontrar
uma saída.

Poesia - Edson Bueno de Camargo

Damien Hirst – Psalm Print: Ad te, Domine, levavi (2010)

Lâminas

ancoro estas utopias
em asas de borboleta
hastes duplas
delicadas
e precisas
como lâminas de cortadeiras

meus olhos já foram inundação
e secaram tantas outras vezes
(e medraram nos esquecimentos)

açude pisado no barro
das estrelas desta noite

respire o frio possível
no ar da alunagem

(as rãs
em concerto
vigiam a nova prole)

Poesia - Regina Alonso

Rosa Meditativa, 1958, by Salvador Dali, Oil on canvas 36 x 28 cm.
Ikebana de areia

Deserto:
cabana de mago
é ikebana.

Tapete circular.
Tenda de altura central
quase tocando o céu...

A luz atravessa
o pano de algodão.
O vento a rede embala.

No fogo, o alimento.
Na esteira, o corpo aguarda:
a água benta e o pão.

Poesia - Ricardo Portugal

Chinese painting master Wu Guanzhong
novo passageiro
no metrô a quem chega
o bebê dá adeus

trem bala para Cantão
a menina canta
a canção da avó

pescaria no inverno
uma rede de luzes
sobre o Rio das Pérolas

ponte na primavera
também as luzes da cidade
param a olhar o rio

janela para o inverno
barcos navegam o vidro
entre a cama e o rio

[ in Zero a Sem, Ed. 7 Letras - 2011]

Ricardo Primo Portugal é escritor e diplomata no Consulado-Geral em Cantão (Guangzhou), no Sul da China. Divulguou ensaios sobre cultura chinesa e poesia clássica chinesa. Tem poemas publicados nas revistas Sibila, Germina e Cronopios. Em junho último, saiu pela UNESP o livro Poesia Completa de Yu Xuanji, importante poetisa da Dinastia Tang, traduzido diretamente do chinês por Ricardo Portugal e sua esposa Tan Xiao. Os poemas aqui apresentados são uma sequência do seu novo livro que acaba de sair pela Editora 7 Letras, Zero a Sem.
http://www.editoraunesp.com.br/catalogo-detalhe.asp?ctl_id=1267
http://www.germinaliteratura.com.br/2011/ricardo_primo_portugal.htm
http://www.sibila.com.br/index.php/critica/1867-poesia-completa-de-yu-xuanji
http://www.ameopoema.com.br/arquivos/ricardop.htm
http://www.sibila.com.br/index.php/critica/681-tres-cortesas-chinesas
http://www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=4855
http://www.sibila.com.br/index.php/critica/1902-a-danca-da-poesia-uma-semiotica-do-caractere-chines
https://www.7letras.com.br/zero-a-sem.html

Poesia - Marina Alexiou

A Família Nômade – Pablo Picasso
No chão do universo,
As famílias nômades errantes surgem como uma miragem, um ponto difuso na longa estrada. Fugidio caminho...
Carregam consigo as bricolagens de um destino e se mascaram em seus pertences tão exíguos. Tão remotos. Tanto silêncio....
Sob o céu azul da manhã, eles - os caminhantes- despontam trazendo uma narrativa que se renova de acordo com a paisagem humana que os acolhe
As suas alegrias, incertezas, sentidos e percepções, dispersas, continuam a vibrar num passado que unifica essa composição de infinitas nuances e cores, desse ser que é. Solto no espaço sem limites...
A trupe celestial, em sua errância, mede os passos, aplaina as dores do mundo com a exuberância de seu espetáculo astral.
Para sempre encoberta de mistério e assombro, desenrola a fantasia luxuriosa da realidade percebida,
E segue... sendo a resposta.

Marina Alexiou tem 52 anos e é professora universitária, graduada e mestrada em Filosofia. À partir de algumas viagens ao exterior e de visitas a museus, palácios e monumentos, Marina ficou impressionada com essas experiências estéticas, e sentiu a necessidade de escrever sobre as diversas impressões vividas. Alguns dos seus escritos - prosas poética? - serão apresentados nos próximos números de TUDA com as respectivas imagens que a fizeram sonhar e escrever.

Crônica - Roniwalter Jatobá

Grant Wood's American Gothic, 1930, Oil on Beaverboard
O mistério da eternidade

Toc, toc, toc.

Bato três vezes sobre o tampo de madeira da mesa antes de iniciar essa história.

Medo, superstição? Bom, há algum tempo li numa revista uma pesquisa sobre milhares de norte-americanos que tinham vivido a experiência de morrer e voltar à vida. Existem inclusive vários livros sobre o assunto e na internet tem vários sites que tratam das NDE - Near Death Experiences, ou Experiências Próximas da Morte.

Numa viagem ao sertão baiano, minha mãe comentou certo dia sobre a amiga, a professora aposentada Marli de Souza Farias, que sofrera um enfarto e, segundo ela, vivia contando coisas do além.

-- A coitada se salvou do coração fraco, mas deve ter perdido o juízo -- concluiu dona Maria.

Sinceramente, não gostava nem de pensar sobre o tema, mas era uma história e tanto, e por dois dias aquilo aguçou a curiosidade. Em passeios na represa formada pelo rio Aipim, em Bananeiras, o caso não me saía da cabeça. Quando olhava as águas límpidas e espelhadas do imenso lago, via submergir o rosto de uma mulher idosa.

Numa tarde, fui ao hospital da cidade próxima, em Senhor do Bonfim, mais para me certificar se Marli era uma doida de pedra ou se ela sentiu, mesmo por alguns minutos, a sensação da eternidade.

Fui. Quando a mulher começou a me contar o seu drama, no princípio não acreditei na veracidade dos fatos. Mas, deitada ali no leito do hospital, ainda com tubos penetrando no nariz, por nenhum momento pensei que era brincadeira. Sim, tivera um enfarto e, por pouco, escapara da morte. Contou-me que foi salva pelo providencial atendimento de seu filho, um cardiologista, que ali passava as férias.

Puxei uma cadeira e sentei ao seu lado. Embora fragilizada, tinha um sorriso sublime nas feição marcada de rugas. O rosto era pálido, pele alva. Falava ainda com dificuldade, mas parecia não se cansar por mais que lhe perguntasse coisas sobre a sua experiência.

Eis o seu relato:

De repente me dei conta de que estava morta. Para confirmar ainda mais o meu pensamento, uma voz fúnebre e fria me disse bem junto ao ouvido esquerdo:

-- Você está morta.

Naquela hora, eu estava caída na cozinha de minha casa. É um cômodo pequeno e minhas pernas ficaram dobradas em contato com o fogão. Queria dar um grito lancinante, mas nada saía de minha boca.

Vi uma sombra clara, como a minha pele, pairar sobre o meu corpo inerte. Por alguns segundos, vi aquele corpo parado de mal jeito, mas a cada instante queria me afastar logo dali, como estivesse sendo sugada por uma força estranha.

À frente, uma caverna escura. Não me lembro de detalhes, parecia com a construção de uma mina antiga e abandonada. Mas estava limpa e não tinha madeira para a sustentação do teto. Adiante, via a luz brilhante e azulada, que era provavelmente o que me puxava naquela direção.

Tinha medo, mas não sentia nada no coração frio e sem movimento. Subitamente, veio uma onda de felicidade, então desconhecida. Minha sombra se agitou ao atravessar a luz e, logo depois, seguiu em frente vendo rostos conhecidos de parentes e amigos há muito tempo falecidos.

Vi meu marido já morto. Vi o riso de uma criança que um dia acompanhei o nascimento e não resistiu ao parto. Vi a antiga lavadeira de roupas da casa de minha avó materna. Vi o cachorro chamado Rex, que meu pai me presenteara na infância. Mais adiante, entrei numa grande cidade. Prédios luminosos, jamais vistos. Passei por ruas sem carros, sem movimento de gente.

Sentia medo em olhar para o corpo -- uma sombra -- e ver através dele. Mesmo assim, olhava para o contorno transparente e sem sinal de carne e osso. Mais adiante, vi uma barreira. Na verdade, uma cerca viva de uma árvore florida e de espécie desconhecida. Tudo fechado. Então, me movimentei para o lado. De repente, me senti mergulhada até o pescoço em um rio negro e frio. Estava perdida. Ouvi uma voz bem alta, de tonalidade doce.

-- Esta é a eternidade. Esta é a eternidade.

Em meu pensamento, perguntei:

-- O que é isso?

A voz novamente respondeu:

-- Este é o rio da Morte.

Depois, o silêncio pareceu durar séculos. Aí, ouvi a voz aflita de meu filho ao meu lado e, creia, a sombra penetrando com cautela no meu corpo. Voltei à vida. Tinha consciência na hora: meu filho estirava minhas pernas e me colocava em posição confortável, enquanto esperava a chegada da ambulância.


No mesmo dia, relatei toda a história a minha mãe. Com seus 85 anos de incredulidade, ela ficou em dúvida.

-- Foi e voltou? A vida é uma só -- filosofou. -- A morte também.

De volta a São Paulo, contei a mesma história a um grupo de amigos. Um deles, o bruxo e farmacêutico Renato Carvalho, afirmou que essas experiências deviam ser bem analisadas. Afinal, concluiu ele, na eternidade não existe guia turístico.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins

Memórias De Um Carnaval

Godoyfredo Alcebíades era um cidadão pacato, destes que chegam cedo em casa, tomam um bom banho, depois pijama, jantar, Jornal Nacional, novela e cama... porém nos dias de carnaval ele virava outra pessoa: vestia a sua fantasia de romano e sumia de casa na sexta de carnaval e só voltava na quarta-feira de cinzas em um estado deplorável... depois disso, o lar voltava para a base do “feijão, verdura, ternura e paz”... até a sexta-feira de carnaval do ano seguinte.

Ismayla Dorotéia, sua sorridente esposa achou que com a vinda do filho ele iria deixar de lado a estória de carnaval, porém nada feito, durante os três anos consecutivos ao nascimento do Quynzinho ele continuou a ser um pacato cidadão somente 361 dias por ano... mas agora o Quynzinho já estava com quatro anos e iria começar a perceber a ausência, de modo que Ismayla Dorotéia passou todo o fim de semana que antecede o carnaval pedindo para Godoyfredo Alcebíades desitir de pular o carnaval...

- Quem pula é cabrito, eu não pulo... eu me divirto no carnaval – resmungou ele domingo a noite, depois do Fantástico.

Na segunda ele sai sem dizer nada ... volta para casa um pouco mais tarde, porém carrega uma caixa de papelão com um filhote de Labrador... Quynzinho adora... ele a observa com a certeza de que mais uma vez, ele irá se divertir no carnaval...

Godoyfredo Alcebíades se divertiu a valer naquele carnaval, e também no carnaval do ano seguinte, porém no carnaval do ano seguinte ele resolveu levar o labrador, que recebera o nome de “Heroy”(*) para a farra...

Voltou na quarta-feira de cinzas... com um vira-lata..

− Que cachorro é esse??? Cadê o Heroy??? exclamou ela ao vê-lo chegando naquele estado...

- É o Heroy, só que está fantasiado de vira-lata...

No dia seguinte a ressaca ...as lembranças vagas e confusas: no sábado-de-carnaval havia dado o Labrador de presente para um menino de rua, depois na segunda-de-carnaval havia recolhido um vira-lata na rua... agora a necessidade de ter que inventar uma estória para enganar o Quynzinho...

- Sabe Quynzinho, estávamos andando á noite, neste carnaval, eu e o Heroy pela rua Anita Garibaldi (**), quando ao chegar na esquina com a avenida Conde do Bonfim encontramos um mago terrível que lançou um encanto mais terrível ainda em nosso cãozinho que o transformou em um vira-lata... porém ele disse que o feitiço só dura até o próximo carnaval...

O Quynzinho o observa mudo, porém boquiaberto... então Godoyfredo Alcebíades percebeu em que enrascada se metera...


(*) Com Y em homenagem a letra que aparece em Godoyfredo, em Ismayla e em Quynzinho.
(**) na Tijuca, Rio de Janeiro

Crônica - Cesar Cruz

Miyamoto Musashi having his fortune told. Print by Utagawa Kuniyoshi
O meu Feiciharakiri

De repente me dou conta de que preciso ser sincero, não tanto aos meus princípios, mas mais às minhas irritações. Tentei tirar no bom humor o mau humor que o Feicibuqui me causa. A dúzia de amigos que leu meu último livro, suponho que tenha lido a crônica O Feici e o Guma, em que falo sobre essa superficial e fugaz forma de amizade.

Tentei tirar no humor, mas confesso que meu azedume, provocado pela irritabilidade oriunda da idade que me encontro, me impede.

O Feicibuqui e tudo o que ele representa me aborrece de maneira muito especial. Sou um rabugento confesso. Não suporto aquele ambiente da superficialidade e egocentrismo. A ferramenta "curtir" é a concretização cibernética da hipocrisia moderna. A pessoa curte , mas sem saber o que curtiu. É a média (e não mídia) digital.

Sofri um acidente, um pequeno acidente, mas que serviu como divisor de águas, como um momento de reflexão, como lente de aumento que me fez enxergar e pensar no que representa de fato uma rede como aquela.

Escrevi uma crônica sobre o meu acidente e a postei diversas vezes no Feicibuqui, no intervalo de 7 dias. Cerca de 15 vezes no total. Duas dezenas de pessoas "curtiram" a minha desgraça, sem ao menos ler, pois se tivessem lido teriam comentado. E não curtido. Curtiram o quê, ô caras pálidas? Algo que nem leram, né? (Assim como também não lerão isto que escrevo agora).

Vamos ver quantos vão curtir este texto, sem ao menos ler. E isso é cômico ou trágico? Não sei responder. Alguém aí que responda por mim.

Houve uma meia-dúzia de pessoas que leram aquela postagem do meu acidente, sim. E essas, claro, comentaram o ocorrido. Afinal, um acidente com o amigo...

Mas analisemos: tenho 520 amigos ali no Feicibuqui? QUINHENTOS E VINTE!

Percebeu o absurdo? É a solidão em meio à multidão. Alguém já escreveu sobre isso.

Do que serve o Feicibuqui, afinal? Para se fazer amigos? Não se faz amizade assim, acabo de provar.

Então, para se manter amigos? Ora! Os meus amigos são amigos com ou sem Feicibuqui. Naquele ambiente superficial não se mantém coisa alguma, muito menos amizades, sejamos sinceros.

Para se entreter, então? Mas se entreter com o quê? Com o diário de "pequenezas" que as pessoas postam ali a cada 5 minutos? "Fui na feira, tô no trânsito, meu filho fez cocô, um pernilongo picou minha bunda, almoço na minha irmã, fui sei lá onde..." É isso? É essa espécie de diário aberto da vida dos outros que usamos para nos entreter? Essa enxurrada de nada, e que sobressai às isoladas tentativas vãs, de alguns poucos, em trazer à luz qualquer assunto de maior relevância e conteúdo mais robusto?

Estou fora. Permanecer ali seria uma luta inglória contra tudo o que eu não acredito. E pior: seria concordar. Não tenho mais paciência pra forjar esse aço frio. Me sinto irritado e sem forças.

Não me acrescenta em nada, o Feicibuque. O tempo que dedico a ele, dedicarei a ler mais livros, a navegar pelos sites interessantíssimos que há na Internet, conversar com os amigos, enfim... a vida é curta para ser pequena, como garantiu Disraeli.

Bem, argumentam que o Feicibuqui serviria para se divulgar algo para uma plataforma grande de pessoas. E serve? Não serve. Provei isso também. No lançamento do meu último livro, depois de uma louca e intensiva divulgação que fiz ali, durante dois meses, recebi o mesmo número de pessoas na tarde de autógrafos que recebi na do primeiro livro, quando eu nem ao menos tinha Feicibuqui.

Aquele é o ambiente onde impera a comunicação genérica e rala, o entretenimento oco. É a vitória da aristocracia do vazio, que incrivelmente ainda (e mais do que nunca) faz tantos adeptos: é o BBB, a Luisa do Canadá, o Michel Teló, e o diário de efemeridades cotidianas de cada um, e tudo o mais (ou menos) que possa vir por aí...

Me desculpe quem gosta. Não é nada pessoal. É apenas um modus vivendi que não quero mais contribuir para fomentar.

Ah, sim, conheci pessoas legais ali, isso de fato ocorreu. Pessoas que foram apresentadas a mim por outras pessoas legais que já eram minhas amigas antes do Feicibuque, mas que, pensando bem, me seriam apresentadas de qualquer maneira, por intermédio do meu blog, do meu email, do meu telefone... Então, nem pra isso o Feicibuqui serve.

Sim, sim, admito. Estou amargo, cinzento e ranzinza, começando um 2012 duro e desanimado. Talvez seja isso mesmo...

O fato é que minha presença, e as coisas que escrevo fazem mal aos animadíssimos feicibuquers. Ou pior: não fazem nada, já que ninguém lê nada daquilo que ninguém escreve e que se apresente mais espesso e profundo que uma polegada.

Dispenso figurar nesse palco. Por favor, não me curtam.

Dou aqui e agora o meu grito de NÃO a essa forma moderna de relacionamento. Como um protesto, paro amanhã no fim do dia de Feicibuquear. Faço, convicto, o meu feicisuicídio, o meu feiciharakiri.

Alguns dirão para que eu não faça isso, pois, como quem se mata, posso me arrepender.

Sim, posso. Porém, teimoso (se eu não fosse teimoso não seria escritor no país do BBB), farei assim mesmo.

Continuarei aqui na Internet, para os que gostam do que escrevo, que sabem que podem me achar pelo meu blog: www.oscausosdocruz.blogspot.com, trocar ideias comigo através do meu email: cancruz@terra.com.br, me telefonar, passar em casa, me encontrar na padaria pro café...

E quanto a você, que tem Feicibuqui, aproveite para avaliar quantos dos meus 520 amigos vão curtir, ou verdadeiramente acessar, aquela postagem.

Tchau.

Conto - José Miranda Filho

Rua dos Sapateiros, LIsboa - Antonio Bartolo
Encontro de Amigos - Parte 3

O amanhecer do dia seguinte foi igual a todos os outros nossos amanheceres. Rotina de sempre. Café da manhã reforçado para suportar o trampo do dia, e pé na estrada. Hoje é um novo dia que se nos depara. Ontem passou, quando muito virou saudade... Acordamos, tomamos o café da manhã e traçamos o roteiro: Largo do Chiado, parte alta de Lisboa, acesso pelas escadarias do metrô, estação São Bento, construída em 1916 e de onde partem os trens de subúrbios para todos os bairros da cidade, cuja decoração é ilustrada por azulejos que marcam as passagens dos anos históricos do país. Caminhamos por ruas, travessas e vielas estreitas e de difícil acesso, sempre admirando as construções seculares. Verdadeiros monumentos históricos.Dedicamos especial atenção para a beleza das Praças Luiz de Camões e Antonio Ribeiro Chiado, este último, poeta luso do século XVI, pouco conhecido entre nós brasileiros.

Em frente ao Bar Brasileiro, um estabelecimento secular, aonde Fernando Pessoa costumava passar as tardes depois do trabalho para tomar seu aperitivo, está erguida em tamanho natural sua estátua. O mais importante poeta dos tempos modernos da Literatura Portuguesa está alí imortalizado . Ao seu lado há uma cadeira vazia, também esculpida em bronze, para os turistas de vários países do mundo sentarem-se e simular com ele uma entrevista ou um simples bate papo. Duvido que alguém que vá até aquele bar não sinta vontade de sentar-se naquela cadeira e tirar uma fotografia ao lado do muito lido e admirado, escritor e poeta.

São de sua lavra obras como Mensagem, publicada em 1934 e diversas outras obras, algumas em lingua inglesa, publicadas sobre os heterônimos Álvaro de Campos, como Ode Triunfal, Ode Marítima e Ultimato, Alberto Caiero, como O Guardador de Rebanhos, o Pastor Amoroso, Bernardo Soares, com Desassossego, sem contar inúmeras correspondências que ele mantinha com inúmeras ficções, como se fossem pessoas reais. Pura imaginação do poeta!

Fernando Antonio Nogueira Pessoa, poeta, escritor e jornalista, nasceu em Lisboa em 13 de julho de 1888, faleceu na mesma cidade, em 30 de novembro de 1935, aos 47 anos de idade, acometido de uma cirrose hepática que contraiu nas baladas e na vida airada das noites de Lisboa. Era um estróina apaixonado por Lisboa. Viveu na África do Sul a maior parte de sua juventude. De inegável cultura, escreveu vários obras sob diversos heterônimos. Antes de morrer escreveu em inglês a famosa frase "I know not what tomorrow will bring."

Ninguém saberá, creio.

Descemos as estreitas ruas de Lisboa e fomos direto ao Mosteiro dos Jerônimos, monumento histórico construído às margens do Rio Tejo por ordem de D. Manoel I em 1496. O Rei D. Manoel I tinha um desejo ardente e suficiente razão para mandar construir este mosteiro: uma delas estava ligada à secularização da manutenção de sua dinastia. Ele queria perpetuar sua memória e de sua família:AVIS-BEJA, tanto que na capela-mor do mosteiro estão sepultados seus restos mortais.

No final do século passado para lá também foram levados os túmulos de Vasco da Gama e do Poeta Luiz de Camões. Há ainda no mosteiro a sepultura de D. Sebastião, porém esta continua vazia até hoje, à espera do corpo do nobre vassalo que jamais retornou ao País. Vitimado pela fracassada expedição ao Marrocos, em 1578, seu corpo nunca foi encontrado, porém, seu túmulo continua vazio até hoje, à espera do grande líder.

Para ocupar o Mosteiro, D. Manoel I convidou os frades da ordem de São Jerônimo, para entre outras razões rezar pelas obras do Rei e prestar assistência espiritual aos navegadores, que da praia de Restelo partiam para novas aventuras além-mar, navegando por águas nunca antes trafegadas.

Do Mosteiro dos Jerônimos, do outro lado da avenida, às margens do Rio Tejo, está à Torre de Belém, outra belíssima construção secular, erguida de acordo com um projeto do Rei Dom João II, que previa a construção de mais dois monumentos em forma de fortaleza, Cascais e São Vicente, na era das descobertas, com o fim de proteger a cidade de Lisboa do ataque dos bárbaros invasores. A Torre de Belém está repleta de decorações manuelinas. Atualmente é reconhecida como patrimônio da humanidade.

Do lado esquerdo da Praça, em frente ao rio Tejo também está erguido um monumento às memórias de Carlos Viegas Gago Coutinho, nascido em Lisboa em 1867 e falecido em 1959, e Sacadura Cabral, em homenagem à primeira travessia aérea do atlântico Sul. Esse monumento foi erguido no século atual.

Visitamos ainda outros monumentos e Museus: A Catedral de Santa Clara; a Igreja de São Roque, Igreja do Carmo e o Museu do Chiado. Na Baixa (um bairro famoso de Lisboa), entramos no Palácio da Foz, no Teatro Nacional, no Castelo de São Jorge, na Igreja de São Vicente, e sentamo-nos nos bancos toscos da Estação do Cais de Sodré. O Museu da Artilharia, e outras relíquias deixamos para visitá-los outro dia. Essas lembranças certamente irão permanecer em minha memória e enriquecer cada vez mais meus conhecimentos da terra de meus ancestrais.

Tradução - Eduardo Miranda

子曰:“不学诗,无以言”
Confúcio disse: se você não estudar poesia, não terá palavras.

[in O Livro dos Cantares (*) - 诗经 詩經 (Shī Jīng) ]


Ninho de Pega

1.

A pega tem um ninho de corda
onde a pomba vive.
Uma criança regressa,
muitos carros luxuosos virão buscá-la.

2.
A pega tem um ninho de corda
onde a pomba tem tudo.
Uma criança regressa,
alguns carros comuns virão buscá-la.

3.
A pega tem um ninho de corda
onde a pomba é a rainha,
Uma criança regressa,
um carroça virá buscá-la.
Cricrilar

1.

Cricrila o grilo na grama
pula muito o saltão.
O futuro mostra o imperador e sua prole
aflito coração, incerta distância,
também a mim pesa ver obstáculos,
também a mim pesa encontrar obstáculos,
o próprio coração decreta rendição.

2.
Sobre sua ida às montanhas do sul
dizem que foi esfaquear o malévolo feto.
O futuro mostra o imperador e sua prole
aflito coração, dor redobrada,
também a mim pesa ver obstáculos,
também a mim pesa encontrar obstáculos,
o próprio coração decreta argüição.

3.
Sobre sua ida às montanhas do sul
dizem que foi segar brotos de ervilha.
O futuro mostra o imperador e sua prole
o próprio coração tolera desgosto.
Também a mim pesa ver obstáculos,
também a mim pesa encontrar obstáculos,
o próprio coração decreta barbárie.
Colher lentilhas d’água

1.

A prática de colher lentilhas d’água
na beira do rio ao sul do vale,
a prática de colhê-las
nas ansiosas e precipitadas margens.

2.
O costume de servi-las
preparadas na cesta,
o costume no rio Shou
de servi-las no velho caldeirão.

3.
A necessidade de ofertá-las
sob o portal do clã real,
de quem será a vez
de possuir esta mulher?
Exibir-se

1.

Cansei de me exibir por aí.
E não é que, dia e noite
Andam dizendo que me exibo muito?

2.
Quem disse que o pardal não tem chifres?
Como então ele furou minha casa?
Agora dizem que não tenho casa,
e prontamente me prenderam.
Mesmo presa e sem casa, digo:
este quarto não é um lar adequado.

3.
Quem disse que rato não tem garras?
Como então cavou meu quintal?
Agora dizem que não tenho família,
e prontamente me acusam.
Mesmo injustiçada e acuada, digo:
não serei tua mulher.


(*)O Livro dos Cantares é a mais antiga coleção de poemas e canções chinesas conhecido até hoje. É composto por 305 poemas e canções, muitas datados entre os séculos X e VII a.C. Ele faz parte dos chamados Cinco Clássicos, os cinco livros que constituíam a base da cultura chinesa antiga e serviram para a estruturação da Escola dos Letrados de Confúcio.

Foreign Word - Eduardo Miranda

駿河薩タ之海上(するがさったのかいじょう)
Vista do Monte Fuji a partir de Satta Point na Baía de Suruga
Utagawa Hiroshige, Período Edo
はいく
haiku


cemitério:
jardim
às avessas.

graveyard:
garden
backwards.

envelhecer:
gastar-se
de dentro para fora.

aging:
wear out
from inside out.

* * *

Este haiku eu escrevi na época em que estudava japonês na Aliança Cultural Brasil-Japão e frequentava as oficinas de haicai na Casa de Cultura Mário de Andrade. Ele segue o rigor dos clássicos japonêses, com 17 sílabas japonesas, divididas em três versos de 5-7-5 sílabas:

孤も秋わ秋深き秋秋の風

Sua leitura é:
komo aki wa
aki fukaki aki
aki no kaze
Infelizmente não tenho vivo na memória o momento que escrevi este haiku, e apelo para uma transcriação de mim mesmo...
outono solitário.
proufunda e pesarosa
brisa de outono.

Releitura - Mário Quintana

Van Gogh, Starry Night Over the Rhone
Cocktail Party

Não tenho vergonha de dizer que estou triste,
Não dessa tristeza ignominiosa dos que, em vez de se matarem, fazem poemas:
Estou triste por que vocês são burros e feios
E não morrem nunca...
Minha alma assenta-se no cordão da calçada
E chora,
Olhando as poças barrentas que a chuva deixou.
Eu sigo adiante. Misturo-me a vocês. Acho vocês uns amores.
Na minha cara há um vasto sorriso pintado a vermelhão.
E trocamos brindes,
Acreditamos em tudo o que vem nos jornais.
Somos democratas e escravocratas.
Nossas almas? Sei lá!
Mas como são belos os filmes coloridos! (Ainda mais os de assuntos bíblicos...)
Desce o crepúsculo
E, quando a primeira estrelinha ia refletir-se em todas as poças d'água,
Acenderam-se de súbito os postes de iluminação!

Ilustração - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins

Ilustração - Carey Clarke


Nascida no Condado de Donegal em 1936, Clarke estudou no National College of Art and Design, NCAD, Dublin, onde assumiu um cargo de meio-período como professor após sua graduação. Foi eleito Membro Associado da Royal Hibernian Academy em 1967 e nomeado professor integral de desenho e pintura no NCAD em 1968. Clarke estudou com Emilio Vedova na Salzburg Summer School of Fine Art, na Áustria, fez estudos e pesquisas de métodos especiais de pintura à têmpera sob a orientação de Pietro Annigoni em Florença, na Itália. Clarke foi eleito membro da RHA em 1981 e foi promovido a Palestrante Sênior no Departamento de Pintura da Faculdade de Belas Artes, NCAD em 1985. Atuou como presidente da RHA de 1992 a 1996, foi eleito Membro Honorário da Royal Academy, Londres em 1993 e Membro Honorário da Royal Scottish Academy de Edimburgo em 1993. Clarke se aposentou em 1995 e continua a pintar em tempo integral.
Carey Clarke, Substance & Shadow, Brass Kettle, 1980,
Tempera on gesso panel, 69 x 86 cm.

Carey Clarke, Furnace, Dead Sea, 1999, Watercolour on paper, 51 x 68 cm.
Carey Clarke PPRHA, Evening Light, 2006, Oil on canvas, 97 x 97 cm
Carey Clarke PPRHA, Portrait of Hannah Bloom Teskey, 2010, Oil on canvas, 71 x 56 cm.

A RHA exibe uma exposição de Clarke, chamada Carey Clarke PPRHA, A Retrospective, e acontece de 13 de Janeiro a 26 de Fevereiro.

Ensaio - Ronald Augusto

Roberto Aguerre Ravizza, Acordes En Rojo, olio su tela, 200x150 cm
As palavras contam menos que os acordes

Antes de tratar da linguagem contida em Córrego de amarras, que é o que de fato interessa, abro aqui um intervalo para discutir um aspecto, no meu entender, secundário, porém não irrelevante, do percurso poético de Deisi Beier que se apresenta ao público a partir de 2007 com Tramas de orvalho, também um livro de poemas. O sucinto comentário diz respeito ao modo como a poeta aborda a imagem cambiante do feminino em sua poesia.

Na direção oposta da relativa pureza do espaço interior, espiritual, onde a autonomia discursiva deveria reinar, o poderio da estruturação social exerce sua força. Até certo ponto, a literatura atual procura atender às demandas da dinâmica social em curso, votada a reparar injustiças e exclusões, já nem tanto de um ponto de vista politicamente correto, mas a partir de sua versão diluída, a saber, ratificando uma espécie de etiqueta da boa convivência étnica, multicultural, e, ainda, entre os gêneros. Não pretendo afirmar que o livro de Deisi Beier seja sinédoque textual de alguns aspectos dessas questões — as de gênero, principalmente. Não obstante, essas perspectivas sobre o texto literário representam, hoje, o reconhecimento da legitimidade de uma série de discussões radicadas no espírito de nossa época. A reivindicação das diversidades se associa a um relativismo hipoteticamente progressista, e, sob tal rubrica, as linguagens analógicas tendem a ser reduzidas, por assim dizer, a dois modos de ser: num caso (a), restam como um sistema autista que mais se presta à omissão alienada; e em outro (b), emprestam eventualmente seu caráter sugestivo às causas ideológicas, dando outra coloração ao desempenho destas na efetivação dos seus resultados. Isto é, de um lado ou de outro, a palavra é considerada como sobra e/ou sombra da ação. Despojo dos conflitos político-sociais. O “domínio próprio” não se encontra isento nem livre do imperativo dessas temáticas e questões que definem uma parte da nossa existência. No entanto, mesmo concordando com a eventual pertinência das pulsões ideológicas envolvidas na sondagem do texto criativo, não se pode perder de vista que isto ainda é uma parcela da situação ou um dos muitos meios de fruição do indeterminado do discurso literário.

Desde sua estréia, a poeta Deisi Beier busca essa indeterminação na sua interação complexa com o pano de fundo da sociedade. Sua poesia, a par de uma obstinada pesquisa semântica, convida o leitor a abandonar-se, por sua vez, a uma deriva semântica. É o que, felizmente por outros meios, diz um dos fragmentos de “Relicário de nadeiras”, primeira seção do livro:
repetir, repetir, repetir
até perder o senso e parar de doer
Por meio desse movimento reiterativo (conceito-chave da função poética), no qual as estruturas verbais se conformam de maneira a sugerir certas idéias ou assuntos mais pelas relações musicais que as ligam do que pelo sentido lexical com que são admitidas pelo senso comum, Deisi Beier segue o percurso iniciado em sua obra anterior, e alcança uma imprecisão virtuosa pulverizando qualquer pretensão de um “conteúdo duro” que se queira propor para os seus poemas. Um exemplo dessa deriva semântica a que o leitor é instado a se lançar, se acha no último escrito (de três linhas apenas) ainda da mesma seção, na qual Deisi Beier põe em causa a autoridade do texto oracular ou vaticinante, propondo as suas anti-sentenças, seus provérbios improváveis, enfim, enunciados equívocos porque não são o decantar dos saberes coletivos colecionados no tempo, mas sim a sua instável e particular “contribuição milionária” a este estado de indagação permanente que às vezes nos atormenta, mas sem o qual não pode haver o humano. Diz, assim, o fragmento de sabor brossiano: “agora meu dedo indicador/ está em minha têmpora/ fazendo algumas voltinhas”. O poema-terceto encerra a seqüência cancelando as possibilidades de extração, por parte do leitor, de qualquer essência filosofal canônica capaz de orientá-lo em sua busca de conhecimento ou de desfechos.

Em paralelo, de modo um pouco mais renitente, na segunda parte do livro, “Do córrego”, acompanhamos as senhas alusivas ao feminino: “perdoa essa ambígua essência”; “úmida planta no escuro de si”; “o zinabre no fundo esquecido de tanto jogar-se por águas ao poço”; “à noite viro brinquedo da morte”, etc. Deste ponto em diante — e se quisermos colocar as coisas na perspectiva da consciência de gênero —, Deisi Beier tenta situar sua poesia, numa zona esteticamente funcional, isto é, os poemas ensaiam o negaceio e a negociação entre o “a autonomia do espaço interior” e as restrições da controversa trama social a exigir-nos papéis e/ou máscaras bem afiveladas. Entretanto, a consciência da poeta em relação à condição feminina transposta ao poema e depois ao apetite do leitor, participa dessa mesma analogia do “perder o senso”. Portanto, Córrego de amarras representa uma experiência de linguagem que não se ressente de concordar, inclusive, com aquelas leituras adversas que eventualmente provenham da recepção a propósito “do que quis dizer a poeta” em tal poema. Porque (e aqui recorro a Paul Valèry), Deisi Beier não quis dizer, mas quis fazer, e foi a intenção de fazer que quis o que ela disse. A “desvantagem” de não ser óbvia faz com que seus poemas abordem o tópico “o que é uma mulher” e a relação amorosa, de maneira que essas coisas, por meio da reiteração de formas, “parem de doer” no nosso automatismo psíquico. Mais um movimento nesse:
caminho por escrito
nessa caligrafia coreografada
em casa larga
boca-traço sem nome
o prumo do riso
de um dizer sempre oblíquo
Chamo a atenção do leitor para os sintagmas “caligrafia coreografada”, “o prumo do riso”, e o “dizer sempre o oblíquo”, já que esses compósitos, ao menos provisoriamente, me autorizam a ler a representação da mulher em Córrego de amarras, de um ponto de vista em que os traços do histrio (fingidor, ator de mimos, etc) na dicção de Deisi Beier se projetam sobre a convenção do hister-o (do gr. hustéra,as “útero”). Isto é, graças ao riso oblíquo da consciência de formas e de linguagem, Deisi Beier consegue não participar de uma restritiva “poética do feminismo” que, até agora, só serviu para sustentar uma espécie de teoria histérica da literatura.

A estética do esboço, do lacunar, que sublinha a primeira seção é compensada com a série de poemas de “Do córrego” que a segue, e onde Deisi Beier como que começa a preencher os intervalos vazios do seu constructo. De todo modo, a elipse é mantida e permanece sendo diagramada, inclusive, na eventualidade da página onde a brancura e o espaço mallarmeano comunicam a impossibilidade, em termos conteudísticos, de um sentido completo. Porque seu texto, que fala lateralmente, se recusa a coincidir com as regras públicas do discurso que moldam os atos comunicativos da vida cotidiana. Cada verso da poeta desborda em liame, linha, fio de sangue que é símbolo “e corre em pacto/ íntimo e insondável”.

Deisi organiza seu acervo de imagens e achados verbais de maneira que o conjunto de poemas apresenta uma alternância de peças mais breves e outras mais longas. Nestes poemas mais afeitos a uma discursividade aproximada do vertiginoso, do monólogo interior, Deisi estabelece delicadas conjunções e disjunções com o Cântico dos Cânticos ou Canto dos Cantares, representante máximo de hino nupcial, e texto modelar da literatura ocidental. Dentro de certos limites, a aproximação não é descabida.

Se, descartando outras camadas de significação, o cantar bíblico trata do amor natural e, sem muito esforço, caberia na figura de um conjunto de poemas eróticos, já a atmosfera de fundo de muitos poemas da segunda metade de Córrego de amarras, por contraste, aponta, por assim dizer, para um virtual cântico do desencanto amoroso (não definitivo!) relativamente aos impasses do jogo conjugal. Para não ficarmos apenas nas diferenças, lembro, ainda, que um ou outro tradutor do livro sagrado, aponta a sua “poesia por vezes desconexa”. Ao transpor tal avaliação para o caso de Deisi Beier, leio o qualificativo desconexo em termos de parataxe. Deisi cria poemas que se justapõem num inventário-discurso de compósitos imagéticos, um verdadeiro cine-sintagmas. Uma fala em simulação de transe. Vejamos alguns excertos de quatro poemas:
minha nau partida
sob as velas de hibiscos rosados

(...)

beijo onde não queres beijo
a ferida aberta a fórceps
a decência escancarada
tua alma teu trauma

(...)

o tanto quanto de mim
te mostrei

áspero o toque dos dedos
da ausência

(...)

a urgência da falta
o desconsolo do breve
a razão não resiste
Por outro lado, em contracanto com Salomão, a morena dos Cânticos também se expressa como se estivera levemente perturbada, não só por eros, mas no sentido em que, à diferença de uma sacralidade iluminadora e judicativa, a consorte fala (em versos) desde a ambigüidade da analogia e das imagens que, por essência, implicam uma dose de escureza ou de veladuras metafóricas. Mais uma vez a deriva semântica retorna ao foco, e a poeta Deisi Beier, por seu turno, fala através de alguém que sussurra, por exemplo: “encosto minhas dúvidas no ombro/ dos lençóis que não respondem”. Miragem de significação: o leitor frente à mancha gráfica do poema na página, lençóis e dobras que emudecem.

Não me lembro em que prólogo a um dos seus livros escreve Jorge Luis Borges que toda leitura implica uma colaboração. O leitor deve suprir as ausências constitutivas do texto literário — inventando as suas próprias respostas —, mesmo porque são elas, as lacunas, que tornam possível o prazer poético. Borges, comparando o seu escrito a uma milonga executada com languidez, diz: “La mano se demora en las cuerdas y las palabras cuentan menos que los acordes”. Tomo esta imagem como a minha divisa de leitura de Córrego de amarras. Deisi Beier abala o leitor com acordes inauditos.